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Degustação do 1o capítulo dos livros

Espaço para experimentar os livros digitais multimídia de Paulo Santoro, mídia inédita que propicia nova experiência de leitura

Degustação do 1o capítulo dos livros

               1o livro: O Jogo dos Papeletes Coloridos, Capítulo Um,  "Vésperas"

         2o livro, O Centro do Universo, Capítulo Um, "O longo caminho"

3o livro, Caminho para Virtuália, Capítulo Um, "Cores vistas do palco", (inédito)

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1o livro: O Jogo dos Papeletes Coloridos, Capítulo Um,  "Vésperas"

O Jogo dos Papeletes Coloridos

Vésperas

 

UM não via a hora de botar aquela gente toda para fora. Eram seus assessores dedicadíssimos, escolhidos entre os melhores de seus seguidores, mas precisava manter um resquício de controle e disciplina. Precisava reservar um tempo, por curto que fosse, para descansar, estar em condições mínimas adequadas de atenção e presteza de espírito para o confronto de amanhã, longamente esperado, a batalha final, o embate derradeiro, espaço reservado para apenas um vencedor.

Era hora de exercer sua liderança incontestável de maneira um pouco mais explícita. Levantou-se de repente, derrubando lápis e calhamaços de papel — era fácil, havia pilhas por todo o lugar:

— Está bem pessoal, agora chega, todos precisamos descansar — disse UM, movendo os braços para a frente, como que enxotando pombas numa praça. — O que não resolvemos até hoje, não será agora que vai acontecer!

E foi pegando pastas, bolsas de uma, paletó e papéis de outro, ajudando e induzindo à debandada porta afora. Queria estar sozinho em sua suíte, mergulhar em sua cama e dar-se a chance de relaxar um pouco. Se haviam conseguido sustar a crescente tensão política e social do mundo lá fora, o vulcão revolvente sempre prestes a explodir, tinha perfeita ciência que era por um tempo limitado, limitadíssimo, e esse tempo terminaria amanhã, ele o sabia. E sabia também que DOIS tinha a mesma percepção. Pensou e sorriu por um momento — ele deveria estar provavelmente tentando, da mesma forma, botar o pessoal dele para fora de seu escritório.

Vai quase que empurrando os últimos auxiliares, a última delas, ocupada da confecção e checagem da correção e publicação de todos os gráficos produzidos antes de sua divulgação externa, ainda volta, recolhe casaco e qualquer coisa mais da poltroninha padrão do hotel, embaixo da janela lateral e, pronto, conseguiu, foram todos para seus quartos. Estava livre.

Sua agenda era muito cheia, tanto quanto o contexto que vivia: estava às vésperas de um momento de decisão importante, em uma situação geral política grave, as expectativas de todos chegando a um nível dramático e ele, ele próprio, chegando ao ápice de sua carreira. Carregava agora o cansaço de anos de disputas, rivalidades, convencimentos e discussões em incontáveis assembléias, embates, entrevistas, diálogos, palestras, dissertações, provocações...

E agora chegara a hora, a proposição final e a consequente votação seria amanhã; todas as pessoas — literalmente todas — esperavam por isso. Estava preparado.

Tranca a porta, finalmente sozinho. Precisa descansar, sente agora o corpo pesado. Vira-se para retornar ao quarto, passa pela cadeira ao lado da janela, na antessala da suíte, onde segundos atrás sua assessora resgatara sua bolsa e casaco. Que faz aquele homem sentado agora lá?

Sério e compenetrado, folheava uma pequena caderneta preta, que parecia de couro, até estacionar em uma determinada página. Apesar da distância, UM viu com clareza seu próprio nome completo, o nome de batismo que continha todos os seus outros nomes intermediários, há muito abandonados, à guisa de rapidez de comunicação e economia de espaço. Em seguida, ao lado, a data de seu nascimento. Ora, esses eram dados públicos, sempre apresentados em seus currículos nos centros de comunicação de massa, todos sabiam disso, pois ele era uma figura pública de alta relevância e interesse.

Parece ele familiar? A fisionomia parece já ter sido vista muitas vezes, em lugares diversos, mas não é conhecida, nunca foi apresentado... De toda forma, como entrou ali?

O corpo pesado, a premência de descansar para a batalha do dia seguinte e agora, ter ainda de lidar com isso...

Ao lado do nome e data de nascimento, UM viu também o horário de seu nascimento. Bem, essa já era uma informação incomum, rara, muito rara — como a conseguira? E quem saberia? Sua mãe, pai, uma tia, além dele próprio, no máximo, e ele, como resultado da universal e insaciável curiosidade infantil de saber, perguntar e re-perguntar um milhão de detalhes. Como estava ali agora, naquela caderneta?

 Essa surpresa de UM foi maior do que a outra, a do fato de ter podido ler tal detalhe a essa distância, naquela pequena e velha caderneta de bolso. Aliás, muito velha, deveria ter muitos anos. Mais de mil anos. Na verdade pareceu a UM ter milhares de anos. Volta o corpo cansado a reclamar, precisando repousar. Começa a pesar uma tonelada...

O homem, sereno, toma do bolso um lápis azul. Estranho, diante da situação insólita dos dois fechados naquela suíte, UM ter parado longamente, fitando aquele lápis comum, sextavado, sem inscrição na lateral, de ponta cuidadosamente apontada, cortada como em tempos muito antigos, com uma faca ou canivete, deixando cortes irregulares, que se dirigiam do corpo longilíneo do lápis em direção à ponta, num feixe dirigido de cortes esculturais mínimos.

Surpreendeu-se com sua própria atenção a detalhes tão exuberantes, nas ricas formas curvas que aqueles cortes sugeriam — quanto tempo de contemplação, naquela situação constrangedora, frente a um desconhecido, teria ficado? Três, quatro segundos? Um minuto?

Sentia que perdia a noção clara da passagem do tempo, creditando tal ilusão sensitiva ao cansaço das quase 48 horas de trabalho ininterrupto com sua equipe, revendo cada detalhe de sua proposta, escolhendo cada palavra, cada construção de frase, tentando antever cada questionamento e preparar a contra resposta infalível, avassaladora, para somar o maior número de assertivas contundentes naquela que seria, já no dia seguinte, a contenda máxima de sua vida, para a qual se preparara tanto — e a do futuro de seus seguidores, seus amigos, de todo seu povo.

O senhor ia ter de lhe desculpar, mas francamente, agora chegava de entrevistas, confirmação de dados, datas, taxas, tarifas, rotas, prazos, cursos, sequências e evoluções, estratégias e metas, estruturas e hierarquias, direcionamentos e adesões. Aliás, precisaria cobrar maior atenção de sua assessoria para evitar um repórter “entrão”, de última — ultimíssima — hora. Precisava, definitivamente precisava, precisava mesmo descansar, o corpo pesando como nunca pesara, vergado à ansiedade, tensão, exaustão, dos últimos monumentais dias.

... ora, será que alguém da equipe — suprema traição — tinha a ele facilitado a entrada? Pensando nisso, entrada por onde?

 

Duas toneladas...

 

O homem, ainda sereno, impassível como se a situação ali fosse normal, corriqueira, como se todos os dias estranhos dividissem espaço tão exíguo, sem que pudesse haver perturbação, incômodo, inconveniência, o homem se prepara agora para uma primeira anotação. Decidido a nem permitir sequer um início de tratativa, UM se dirige a ele, vencendo a pequena distância que os separa, ou melhor, média distância... na verdade... estão tão perto e tão longe...

Enquanto caminhava, lembrou-se de sensação semelhante, essa, de ilusão de distância, muitos anos atrás no parque, da primeira vez que reviu uma sua distante paixão infantil, agora mulher feita e que se tornaria sua esposa. Não sabia por que havia se lembrado desse detalhe nessa hora, talvez quisesse se lembrar de sua mulher, nessa hora indevida, e porque não?

 

(Vídeo 1 — Virtuosa)

 Degustação do 1o capítulo dos livrosDegustação do 1o capítulo dos livros

 

Dividindo a distração com sua lembrança, UM viu nitidamente, com clareza telescópica, detalhes da borda da pequena folha revirada, gasta, meio rota, fruto de manuseios constantes. O homem começara a escrever.

...

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2o livro, O Centro do Universo, Capítulo Um, "O longo caminho"

 

O Centro do Universo

 

O longo caminho

 

Olhei sem entusiasmo aquele retângulo de finas bordas douradas, ali na parede, brilhando para mim.

Percebi ser o Sol tentando invadir meu quarto, incontrolável, entrando pelas laterais, bordas, frestas estreitas muito apertadas da janela.

(Vídeo: “O Sol nos aguarda”)

 Degustação do 1o capítulo dos livros

Não tentava iludir o relógio, fingindo que não o ouvia. Já estava acordado e simplesmente deixava o despertador ali, chamando, chamando. Junto ao acordar da consciência, veio agregada uma percepção, estranha sensação. Parece que vai se abrir um dia estranho.

Lentamente sento na cama. Olho para fora. O sol chama. Sol forte, dia bonito. Lentamente me levanto; decido se vou cumprir a rotina imaginada para o dia, ou se vou tentar fazer algo novo.

Algo novo, mas não necessariamente bom. O estranho sentimento permanece, sólido. Com a dificuldade habitual, desço as escadas, sigo até o portão.

Há um estranho zum-zum-zum no ar lá fora, sons e ruídos nada costumeiros, há algo diverso acontecendo. Decido sair, vencer as poucas quadras até a praça, o lugar que concentrava as atividades, encontros e novidades da região, não era nada longe. Na verdade, quatro blocos, em ângulo.

Por outra perspectiva, penso, era um longo caminho. Foi, de fato, um longo caminho, até aqui.

Lentamente, ultrapasso o portão, e me preparo para vencer a curta distância até a praça, ao mesmo tempo que, inadvertidamente, começam a vir à mente fragmentos de memórias, que se me compõem o MEU longo caminho.

A começar, penso eu, enquanto dou os primeiros passos já na rua, ainda havia um lugar para onde se ir, e tudo agora indicava que nos próximos anos à frente ainda continuaria a haver – e isso era uma grande conquista.  A dúvida sombria, a preocupação generalizada de todas as pessoas em terem de encarar a degeneração crescente, e o consequente colapso final resultante de todos os sistemas conhecidos que sustentaram a evolução humana até então, se dissipara. Fossem os sociais, estruturais, políticos, ambientais, os ciclos alternados de crescimento, maturidade, morte e renovação que se estavam deteriorando rapidamente, enfim, o total colapso ambiental em que o Homem se metera, por obra e construção sua, o fim da Vida, estavam finalmente com uma excelente chance de serem bem equacionados.

Avanço mais um pouco, para chegar devagar ao fim da primeira quadra, onde faria a conversão para dirigir-me à praça; a bengala, companheira forçada desde que virara os oitenta anos segue comigo, me amparando na caminhada, ajudando na escolha dos passos a dar, e, recentemente, nas memórias a resgatar, rever e ordenar.

Não há nenhuma pressa em chegar à esquina: temia o que ia ver, ao virar na rua seguinte. Relutante, defensivo, chego lá, viro, e vejo.

Ou melhor, não vejo.

E este era o problema, era a intuição difusa materializada na sensação ruim com que acordara, o sexto sentido manifestado em formato não compreensível.

Estava acostumado a vê-la de imediato, ao virar aquela primeira esquina, elevando sua esplendorosa exuberância em direção ao céu, por cima dos telhados das casas ao redor. Daquele ponto específico onde estava agora, do início da rua em pequeno declive até a praça, o conjunto visual básico havia se alterado pouco nos últimos cinquenta anos: mais casas foram se incorporando à cena, até fechar completamente a visão, ao nível da rua.

Ao mesmo tempo, a cada novo telhado agregado ao entorno, ela se elevava um pouco mais, até ficar acima e ao largo de todas, dominando sem contestação a verticalidade do espaço aéreo com sua copa monumental, acima das casas.

Degustação do 1o capítulo dos livros

E hoje, simplesmente não estava lá, céu aberto sobre as residências. A visão, ou a falta da visão habitual, amiga, me provocou uma aflição enorme, uma dor no peito indesejada, não pedida, não desejada.

Mais um passo, e inicio a suave descida em curva pela rua, e que vai revelar-me a extensão do sucedido.

Á medida que iniciava a descida do pequeno caminho, da forma lenta com a qual me habitei proceder nessa fase longeva , iniciava de forma simétrica a subida à memória de meu longo caminho.

A cada passo dado, vinham, da memória à consciência, registros variados, de pessoas, situações e lugares, em processo repentino, não solicitado ou preparado. Nunca havia me acontecido isso: simplesmente começou a ocorrer. Era mesmo um dia diferente.

Não obedeciam ordem cronológica: as lembranças vinham em sequência aleatória, dissociadas do tempo, um pequeno detalhe de um sugerindo a próxima revisão.

Tinha portanto, então em meu caminho, companhia. Amigos constantes ou passageiros, namoradas da puberdade, adversários físicos ou intelectuais, pessoas ou instituições, o trabalho, meu jornal, a Academia, os seminários, os debates. A Administração, a Justiça, a Polícia, o sub-mundo, fuga e vitória, perseguição e aclamação, esconder-se e ser chamado, uns poucos perseguidores, e as multidões de admiradores.

Estavam lá em minha companhia, aparentemente de uma jorrada só: a infância trágica, a juventude reprovável, o sinistro início de minha fase adulta, a mulher que cedo me recuperou e mudou minha vida, a fundação heroica de meu jornal, os primeiros artigos críticos, o filho bem vindo, a batalha e o alerta do caos ambientalista, as legiões de seguidores que se formara... O novo pensamento sobre a Vida, as relações entre as pessoas e com a Natureza, a guinada comportamental necessária, a crescente influência nos meios acadêmicos e depois políticos, a “Nova Ordem”, a liderança marcante contra o caos ambiental e o colapso provável da Terra, a responsabilidade indireta pela salvação do Planeta, e da Vida sobre ele.

Sim, fora um longo percurso.

De todas, a lembrança mais remota, a mais longínqua, a da infância. Estava associada à uma época de duras privações.

Tudo era difícil, contido, raro. Até onde me recordava, meu pai saía cedo para trabalhar, e minha mãe tentava prover sua casa da melhor forma possível, principalmente em busca de água.

Morávamos numa casa apertada, não diferente das demais, relativamente bem construída, quase sólida. Possuir móveis seria um luxo: tínhamos uma mesa e três cadeiras, onde fazíamos as refeições, nem sempre fartas, nem sempre periódicas – às vezes não tínhamos mesmo o que comer.

Dessa época toda, o detalhe que mais me lembrava era onde dormia. Como não tínhamos camas, minha mãe criou-me uma, reunindo lado a lado preciosidades, tesouros que havia conseguido recolher, ao longo de seus anos, de menina à juventude, em lugares abandonados, os mais improváveis possíveis, restos de registros de memórias e achados humanos: - livros.

 

...

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3o livro, Caminho para Virtuália, Capítulo Um, "Cores vistas do palco"

 

Caminho para Virtuália

Cores vistas do palco

 

Seria possível a todos contar?

Eram milhares de olhos cravados nele, catalisava toda a atenção como um buraco negro gravitacional atrai loucamente tudo à sua volta, em sua direção, para seu interior, irresistível e voluptuosamente... tudo afunilava num vórtice de energia em sua direção, e ele a engolia. Sentia quase materialmente, fisicamente, toda aquela energia, assim entregue, quase em desespero.

Em sua tribuna no lado esquerdo do palco, segura, aperta o grosso calhamaço de papéis, onde repousam suas ideias, transformadas em palavras, em breve transmutadas em som, veiculadas por sua voz. Deveria ser um momento de glória máxima, o ápice de uma carreira de muita batalha, muita disputa, muito trabalho incessante. Deveria estar eufórico, com absoluta certeza.

Não estava.

Vejo-o bem, da posição privilegiada que estou. Observo-o sentir uma sensação de mal estar, por certo os pensamentos girando, indomáveis e desregrados. Sentia uma não-presença ali, enorme, uma lacuna abissal, tão grande que parecia estar, aquela ausência, presente, ali, em absurdo paradoxo. No entanto não estava: a tribuna do outro palestrante, à direita em posição simétrica ao que ocupava agora no palco enorme, quedava-se vazia, gritando em silêncio um urro mudo, ensurdecedor, em sua falta de presença, seu som não emitido.

Olhou de lado a lado. Quantos metros poderia ter aquele palco? Talvez quinze, talvez vinte metros, parecia agora ter cem, duzentos metros, era infinita sua extensão.

Ainda estava ele em estado de choque – a plateia global, pessoas do mundo inteiro também estavam – não era seu privilégio. O auditório, tenso, iniciando-se poucos metros à sua frente, e estendendo-se aos mais afastados povoados dessa Terra quase exangue, através das transmissões eletrônicas ainda disponíveis funcionando...

De lá se podia bem observar as cores vistas do palco. Bandeiras misturadas.

Bonito visual. Contraste com a tensão, risco de conflito.

 As primeiras fileiras, aquelas que podia ver diretamente, acomodavam pessoas visivelmente aflitas, alguns choravam, outros o olhavam com hostilidade explícita, agressiva mesmo, tudo misturado, perfilados nas fileiras das cadeiras... De que cor eram mesmo? Não seria possível lembrar desse pequeno detalhe, nem se resolveria isso agora: simplesmente não era possível vislumbrar o encosto de qualquer cadeira, o espaço estava absolutamente tomado, nem os corredores se permitiam ser descobertos, as pessoas se aglomeravam, apertadas.

E estavam todas num estado emocional beirando a exaustão psicológica, na expectativa agora frustrada da votação que se daria logo a seguir ao pronunciamento de cada um dos dois postulantes, candidatos a líder da população mundial que caminhava ao ocaso no par de séculos à frente. Sua tarefa, monumental, seria organizar as pessoas e os recursos disponíveis para reverter o colapso ambiental totalmente previsível naquele horizonte de tempo. Seus bisnetos não teriam então nem onde nem como criar seus tataranetos...

O que o distinguia porém de todos os outros, descontrolados, até alucinados,  além de sua capacidade intelectual centenas de quilômetros à frente deles, só comparável a seu tradicional rival ora ausente, é que rapidamente estava conseguindo organizar e ordenar os pensamentos desconexos. Por toda a volta, sentia a enorme expectativa e atenção reinante, vindo num crescendo.

Conheço-o bem, presente que estava nas incontáveis reuniões de sua equipe, que, sempre absolutamente discreta como me cabia, eu presenciei. E, melhor: ele tinha a percepção do momento, e o processava agora na velocidade do próprio pensamento – mais rápida que a luz? – o que lhe trazia um pouco de serenidade: acalmava-se, percebo.

Observo agora que sentiu uma estranha sensação de que seus pensamentos moviam-se tão rápido naquele momento, e se ordenavam tão céleres, que lhe dava a impressão que o auditório, hiper lotado, e todas as demais pessoas indistintamente, todos, se moviam muito, muito lentamente, dando-lhe uma vantagem para se reposicionar, para organizar suas ideias. Assim parecia, era seu proceder.

Sua testa franzida me revela que seus pensamentos vão passando vertiginosamente em sua mente, e ele os agarrava e classificava, ordenava e datava, pondo-os em sequência e tornando-os inteligíveis para si – era como se cada segundo se abrisse em dobras, gerando-lhe mais tempo para sua auto-organização, e se desdobrava de novo... parecia que tudo parava, para ele poder pensar...

Sim, já o vira fazer isso, em outras ocasiões. Registro que, nesse importante e decisivo momento, aproveitou-se bem dessa habilidade.

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“Deixo por um momento o grosso calhamaço de papel do meu discurso; estou farto de carregá-lo para lá e para cá, como se já não o soubesse de cor. Ficará bem na tribuna, à minha espera, saio um pouco de cena, vou para trás do grosso cortinado vermelho, tenho ainda uns poucos minutos antes do início da cerimônia.

Olho pela fresta da cortina.

Incrível, estava só por um momento, ninguém por perto por um segundo. Observo o palco, eu assim protegido, a platéia tensa, as bandeiras misturadas. Agora um empurra-empurra no corredor à direita, quase uma agressão.

Ao mesmo tempo, sinto ser observado: olho em volta, os técnicos estão atarefados, no canto do palco dois médicos atendem o Administrador Geral, que, esgotado, ameaçava enfartar, ali, na frente de todos. Por um segundo, ninguém me observa.

No entanto, tinha aquela impressão de que alguém me fitava. Olho de novo, à minha esquerda, no fundo do palco, ninguém, apenas uma palmeira num vaso alto, grande, decorando-o, de frente para mim. Nenhuma pessoa me observando, agora. Estranho.

Espio novamente. Aquilo estava abarrotado, espero que tudo suceda em serena tranquilidade, há um risco enorme ali, medida pelo grau de tensão no ar.

Olhando a multidão, inicio de repente um caminho, em pensamento, que entendo ser um caminho para trás ; voltava. Onde tudo começara? Onde tudo se desviara?

Baixo os olhos, observo a base da grossa cortina, admiro brevemente seu dançar, sugerido pelo movimento de sua barra pregueada que ondulava, sinuosa. Desde os tempos de criança, garoto mesmo, já tinha recordações e consciência de viver em época de gravidade e de tensão latente – fazia parte do dia a dia. Envolver-se profundamente naquilo nos anos seguintes, em direção à fase adulta, era natural, inescapável, eximir-se era realidade só permitida à quem preferisse um estado de triste e plena alienação, que naquele contexto em nada ajudaria à seus semelhantes.

Agora, ter a crescente proeminência nas discussões havidas, na tentativa de encaminhamento de proposições e de soluções à crise crescente, ascender à posição de destacada liderança aos olhos da população à que chegara, reconheço, não foi ato trivial, objeto de mero desejar. Custou muita dedicação, e, também acredito, um conjunto de características pessoais envolvendo disposição, persistência, fibra e clareza de pensamento, aliadas a alguma concreta habilidade em oratória e persuasão, para poder argumentar, defender e fazer prevalecer pontos de vista muito disputados – e fazê-lo com entusiasmo e paixão genuínos.

Isso, esse conjunto todo, tinha-o eu de fato, assim como também claramente o tinha meu adversário, UM, concorrente de disputas de toda uma vida.

Quando as começamos?

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